segunda-feira, 22 de março de 2010

RETRATOS CEIREIROS: O FERNANDO CARQUEIJA

Fernando Augusto Lopes foi, sem dúvida, uma das figuras que melhor incarnou o espírito ceireiro. Trabalhou desde bem novo na junça, apesar de andar a ganhar o dia, a maioria das vezes, nas tarefas agrícolas.
Conheci-o sempre como um bom selvagem. Conhecia as técnicas do homem primitivo herdadas de um conhecimento ancestral. Como se “desvirava” a terra ao cavar, como descobrir os mais recônditos ninhos, distinguir e chamar pelo nome correcto a diversidade dos pássaros, subir com agilidade a qualquer árvore, reconhecer a necessidade de poda de um ramo, talhar com mestria piões, pateiros, rodas de carros… Só na escola não conseguia agradar ao sr. professor Francisco: a sua lousa andava sempre escaqueirada de tanto levar com ela na cabeça. Mas o Fernando vingava-se. Quando em frente da secretária do sr. professor líamos a lição ou fazíamos os problemas no quadro, o Fernando deixava-se ir, com o balanço do bofetão, contra a secretária não conseguindo parar a força das brochas dos seus tamancos. “-Malandro, partiste a tábua, fizeste de propósito?!””-Não senhor, não consegui foi equilibrar-me…!”
No recreio, o Fernando dava festival. Poço de força e técnica, fintava e marcava golos das mais variadas maneiras e feitios. Obstáculo temível era o sr professor, que também jogava muito bem. As balizas eram duas pedras junto ao muro. O sr professor era defesa e o Fernando tentava passar junto ao muro para a baliza, mas não conseguia ludibriar aquele imponente defesa. De repente, bate a bola na diagonal contra o muro e vai recuperá-la do outro lado ficando isolado para marcar o golo: “Olha o malandreco, para os problemas não tens tu esta esperteza!...” E o Fernando, cabisbaixo, gozava humildemente esta vitória, enquanto todos vibrávamos com a sua astúcia.
Um dia, nos princípios da década de sessenta, fomos jogar a Sernancelhe. Domingo ao início da tarde, aí fomos nós a pé. Falámos da imponência do estádio que até já tinha balizas de madeira! Eram muito largas e por isso, diziam alguns, nem valia a pena pôr lá guarda-redes. Chegados ao campo, fizemos as equipas, encheu-se a bola de coiro, pesadíssima e começou o jogo.
A maioria de nós jogava descalço. E eis senão quando, o Carqueija marca um golão: do meio campo arranca um tal remate que o guarda-redes de Sernancelhe nada pôde fazer. O Márito não acreditava e exigiu que o jogo parasse para ir ver os pés descalços daquele miudito!... E o Fernando voltou a marcar mais vezes, deixando fama por essas bandas.
Esteve depois, como emigrante, em França e, quando começámos a participação desportiva, mais a sério no INATEL, na década de setenta, o Fernando era um dos nossos jogadores. Trabalhou, como todos os ceireiros, nas obras do novo campo e a ele se deve a plantação das mimosas na rampa que, defendia, iriam impedir a água de levar a terra na barreira.
Mantinha o seu ar, também aqui de bom selvagem. Um dia, ainda no campo das Antas, jogávamos já não sei com quem, mas o Carqueija equipou-se de botas normais e o árbitro não o deixou entrar, enquanto não arranjasse umas chuteiras. Não foi fácil, mas lá entrou. Creio que estávamos a perder e o Fernando ia lançar uma bola da linha lateral. O adversário, experiente, passou por ele e em vez de lhe dar a bola para repor em jogo, atirou-a para longe, ficando em frente do Fernando. Instintivamente, o Fernando prega-lhe dois bofetões. Acorre o árbitro com o cartão vermelho em riste… Bem se desculpava com a atitude de provocação do adversário, mas o árbitro sorria irredutível.
Apanhou três jogos de castigo e, quando no domingo seguinte, íamos na camioneta a caminho de Valdigem, enquanto o João Anciães cantava a “Mariazinha” a pedido do sr. Aires, o Fernando, pesaroso, segredava-me que nunca mais voltaria a reagir daquela maneira, porque era muito duro ficar de fora, sem poder jogar.

Tinha estado com ele o mês passado no café e falava-me radiante, da época que o Benfica estava a fazer… desta é que vai ser!... Esta semana deram-me a notícia do seu funeral e eu sinto que realmente perdemos muitas das nossas histórias ceireiras de que ele fora protagonista e que muito ainda poderia testemunhar. E apesar de o homenagearmos com algumas recordações, vai-se apagando a chama bruxuleante da memória colectiva da nossa aldeia ceireira….

- Mário Lourenço

2 comentários:

Anónimo disse...

NO QUADRO DOS GRANDES CEIREIROS TU TERAS SEMPRE UM LUGAR DE DESTAQUE, ATE SEMPRE.

JARDEL16 disse...

OBRIGADO Professor Mario, por nos lembrar destas historias dos nossos queridos e amigos ceireiros, sem dúvida que a beselga e toda a alma ceireira ficou mais triste e vazia.UM ABRAÇO PARA TODOS...João Santos.