terça-feira, 6 de setembro de 2011

A FESTA DA BESELGA

No Verão chegam ao rubro as festas e romarias das nossas terras. Por mais humildes que sejam, elas marcam o climax da vida aldeã. Trazem um passado histórico às costas. Fazem regressar os filhos pródigos que a vida atirou para os quatro cantos do mundo. Asseiam-se as casas. Palpita mais forte o coração de todos.
Hoje, já se notam muitas diferenças. Francos, marcos, cruzeiros... estrangeiraram usos e costumes. Mas a devoção continua a rimar com pagão. E a mística reina ainda nas serranias habitadas outrora por nossos avoengos, dando- nos conta de hábitos que se perdem na memória dos séculos.
É assim na Beselga, em Setembro, todos os anos...

HISTÓRIA
A paróquia de Santa Cruz de Beselga deveria ter as suas festividades por Maio. Mas factos mais relevantes no imaginário popular fizeram com que o dia de Santa Cruz se reduzisse a um " dia santo dispensado", assinalado no fim da missa por uma ida aos campos de centeio ou trigo para colocar uma "cruz" de madeira no meio da seara.
Apesar da festa "oficial" de Santa Cruz, com este cerimonial sugestivo, o Divino Senhor dos Passos viria revolucionar e exaltar os ânimos beselguenses.
Tudo terá acontecido com a nomeação de um novo pároco para a Beselga. Nessa altura, o sacerdote fizera-se acompanhar de uma "imagem" que havia adquirido na anterior paróquia. O povo dessa aldeia não teria gostado e veio raptar o "seu santo". Mas o cura teria as suas razões e convenceu o povo beselguense a ir resgatá-lo.

Num sábado à noite, amanhecendo para o 1° Domingo de Setembro, aí estava a embaixada ceireira a apropriar-se do Divino Senhor dos Passos. Chegou ao limite da freguesia pela madrugada e aí, na presença de todos os paroquianos beselguenses, se iniciou a 1ª procissão seguindo pela "pedraeira, vinha velha, fontaínha, devesa"...
A ermida, lá no alto do "calvário" deve ter sido, nessa altura, preparada. E a vigia teve de ser organizada dia e noite, não fosse o santo desaparecer de novo. Várias pessoas se recordam ainda de ter ouvido, a seus antepassados, cenas de toque a rebate quando uma luz bruxuleava junto à capela. O que é certo é que desta história agitada nasceu uma ligação transcendente entre os ceireiros e o Divino Senhor dos Passos materializada, sobretudo, na evocação desse 1º Domingo de Setembro de 1850.
Daí que se não perceba o dito "mais vale ser diabo no Inferno que Senhor dos Passos na Beselga". Contam os maldosos vizinhos que, num desses domingos, ia um rapaz num dos andores a representar o Senhor dos Passos. O céu ameaçava trovoada e, de súbito, uma forte chuvada afugentou todos os devotos...só esse figurante amarrado ao andor, não conseguindo libertar-se, espiou os seus pecados sob chuva intensa. Daí teria nascido o ditado maldizente, com que se ofende a população beselguense: falta de solidariedade é algo desconhecido nesta aldeia.

A ORGANIZAÇÃO
Muitas terras mais avançadas surpreendem-se por a festa da Beselga se manter ao longo de décadas de pobreza aldeã. Mas o segredo é fácil de explicar: tem séculos de imaginação e radicará nos princípios do comunitarismo primitivo.
Todos os lares ceireiros guardam do rebanho, do porco ou de outros bens rurais, o mais significativo para, ao longo do ano, ofertarem para a "poia". Ainda nos nossos tempos havia um forno de cozer o pão que era de um particular (Sr.ª! Helena). Gastava lenha fornecida à semana, por vários quintaneiros (Sr. Mico, Nico, Pio, Delfim...). Não havia dinheiro para ninguém. Em cada fornada de pão, o cozedor dava um pão de "poia". Esses pães eram somados até domingo e, nesse dia, eram divididos: uma parte para a forneira, outra para a dona do forno, outra parte para o quintaneiro e a restante para a festa do Divino Senhor dos Passos. Esta última era arrematada no final da missa de domingo, à hora da "poia".
Outro forno, o da "Salvina" funcionava ainda nos finais da década de 50, mesmo junto à porta principal da Igreja.
Curioso e importante para a economia doméstica era o facto de não ser necessário pagar logo no momento. As pessoas arrematavam o produto leiloado, ficavam escrituradas no role e só nos fins de Agosto os mordomos passavam pela casa de cada um a receber. Nesta época de fartura agrícola podia-se já pagar com mais facilidade. Com o dinheiro então recebido, mais aquele que era deitado no "prato" no domingo da festa, as despesas pagavam-se. Claro, não descurando também as esmolas do cofre da capela ao longo do ano.
Quem centralizava todo este processo eram quatro mordomos nomeados pelo pároco no dia da festa por proposta dos antigos organizadores.
Como em todas as festas da região, havia um arraial junto da capela do santo. Mas a origem acidentada do santo, a incipiente fiscalização das autoridades autárquicas e os excessos alcoólicos típicos destas festividades, levaram em breve, no meio de rivalidades destemperadas, à proibição do arraial.
No "semanário republicano" PROGRESSO DE PENEDONO em Maio de 1918, o director, Adriano de Almeida, evoca na página 3 (Crónica Alegre / RECORDAÇÕES DO PASSADO VI) a guerrilha que se estabeleceu quando o padre convidou a filarmónica de Penedono, enquanto o povo preferiu a de Sernancelhe. As hostilidades estalaram e os tiros foram inevitáveis. Folheando com cuidado as páginas desse semanário lá se vêem referências a hostilidades "regulares" nas festas da Beselga, da Senhora dos Carvalhais, Santa Eufêmia, Penela e Souto.
O arraial veio a ser proibido e só no último ano de vida do Pe. Donaciano se voltou a realizar, depois de várias diligências bem sucedidas, por parte dos mordomos de então a que tive a honra de pertencer.

A MÚSICA
Na festa da Beselga, o que mais espanta o forasteiro é a paixão pela banda de música. "Toque-se música e bote-se fogo" era o pregão mais ouvido, nesses dias de festa, pelas gargantas bem regadas de um Sr. Mário, Farrejola, Carreira, Coelho ou outros que tais...
A banda de música mais pretendida na Beselga é a de Gouviães, embora o Alberto Francês criticasse o mau gosto. Ele preferia a de Eira Queimada por ter dois trompetes que "são o coração de qualquer banda".
Todo o beselguense que se preze tem de estar presente na chegada da música às 7h 30m de Sábado, no Cruzamento. É aí que há os cumprimentos dos que chegaram de surpresa enquanto a juventude barulhenta e envolta em cobertores tenta afastar o sono (ainda não foram à cama...) para participar na primeira volta da música.
Antes, em finais dos anos cinquenta, íamos esperá-la à cruzinha, junto ao Seixo. Vinham a pé desde a Vila da Ponte, pela Cardia. Enquanto não era hora de começar a tocar, sentavam-se e alguns aproveitavam mesmo para "passar pelas brasas". Nós, ansiosos por nunca mais ouvir o som melodioso, íamos convivendo com eles e assistíamos a algumas picardias de "músico": atavam-se com giesta as pernas aos que dormiam, roçava-se com uma palha pela orelha dos distraídos... cheguei a pensar, um dia, nestas tropelias, quando se dizia "que alguém era músico".
E enfim, chegada a hora, aprumados nas suas fardas, instrumentos a luzir, a magia começava com a 1ª ”volta ao povo". É extensa a volta, mas eles são famosos pela resistência. Antes da subida da capela, param de tocar. Ouve-se agora o coro de protestos capitaneado pelo fogoso Marcolino: antes esta zona não era povoada e os músicos habituaram-se a repousar. Mas hoje, as "maisons" emolduram-se de gente que "paga p'rá festa como os outros, alors?.. " Com bom senso, lá se vão resolvendo os problemas. "Mais à frente, na estrada, o Delmar, o Corsino... repetirão a cena, depois do café Primavera.
Para trás ficaram as três voltas à capela do Divino Senhor dos Passos.
Chega-se ao adro. Distribuem-se os músicos pelos mordomos, para irem comer. Pouco passa das nove, mas o dia é longo.
Demoram os músicos em casa dos mordomos. Já é hábito. Aproveita-se a hora para algumas modernidades: corrida de bicicletas, corrida de burros, atletismo, jogos tradicionais. Enquanto se vão revelando heróis nas corridas, o Zé Gaitas vai dando espectáculo de fífias metendo por atalhos e subvertendo a competição: é o espectáculo dentro do espectáculo.
Sob a parreira do Toninho do Ferrador ou na Sra. Isaura, encostados a uma "bière, ou apéritif" ia-se recordando o ano que passou... festas de outros anos...
Quando o rigor laboral e as aulas dos filhos obrigaram os emigrantes a partir antes da festa chegar, nasceram histórias de saudade dramática. Um dia foi o João Querqueija que foi impedido pelo patrão de vir naquela época.
Com que saudade trágica ele passou aquela noite de sexta-feira. De manhã, ia para a fábrica, mas o pensamento estava na aldeia. E teve de dizer ao patrão:
“-Eu vou-me embora, não posso trabalhar, qu' até os foguetes me estão a
rebentar debaixo dos pés... se quiser despeça-me!”
E, à noite, o Querqueija surpreendia, com a sua presença, o Raúl, o Arreganha e outros que diziam que ele não podia vir... (infelizmente, hoje, depois de ter padecido numa cadeira de rodas no sul de França, já faleceu! Que tormento o terá roído no seu íntimo, pobre ceireiro de casa sempre aberta a todos os beselguenses que chegavam a Bretenoux, nesses últimos anos!...)
De outra vez, foi o Tónio Veiga. Não podia passar a festa e preferiu ir oito dias antes, para não sentir o cheiro das filhós. De lágrima escondida ao canto do olho, lá partiu...
Sábado, às dez e meia, passa pelo meio da música perante o espanto geral. Não conseguira aguentar a ausência e fizera quase dois mil Quilómetros para estar, de novo, na festa...
E é no meio deste ambiente de recordações, desfolhando um manancial de outras histórias, que se vai bebendo mais um copo ao som da música durante a manhã e a tarde.
À noite, há um arraial de arromba com centenas de foguetes. Antes, era na quantidade destes foguetes que se fazia a comparação com as festas da redondeza. Ultimamente tem-se privilegiado a qualidade/diversidade.
No domingo, a missa e o sermão tem toda a solenidade e são o auge da religiosidade e devoção de todo um povo congregado e ajoelhado em torno da imagem tutorial do Divino Senhor dos Passos. Na procissão e nos andores, distingue-se, nestas três décadas, o Zé dos Andores. Com que meticuloso cuidado, com que devotada arte este esmerado ceireiro veste e embeleza todos os santos para esta visita processional às ruas principais da aldeia.

Mas é a partir das sete da tarde que a emoção se exterioriza em cânticos e danças, num crepúsculo de saudade. A música vai partir. Diz o poeta ceireiro:
" Temos a festa.
Vivemos num dia,
todos os dias do ano!"
Bonito, este poder de síntese do Ramiro. Mas eu atrevia-me a dizer que é nesta hora em que o sol morre no horizonte, em que por dez vezes os copos se enchem ao som da banda e se oferecem a todas as mãos dos acompanhantes... é nestes minutos que a Beselga é mais Beselga, que algo de mágico paira no ar e nos rouba a racionalidade.
Os mordomos que acabam sentem-se aliviados deste ano de tanta canseira para organizar a melhor e mais bonita das festas de sempre. Mas já outros mordomos se aprontam para trabalhar ainda melhor durante o próximo ano. E com "os copos" ouvem-se já projectos magnânimos que o tempo e o conservadorismo popular irão purificar. Há lágrimas em muitos rostos apagadas, mas reflectidas pelo clarão da lua. Aprende-se a noção do valor "marginal" à medida que se caminha para a camioneta da música.
E o "João Benfica" tenta ainda, desesperadamente, angariar notas de euros que convençam "o mestre" a dar só mais uma última volta ao povo. E vai dizendo que antes, até iam buscar as bandas, ao fim das festas, a Guilheiro, Antas, Penedono, Chosendo...
E é verdade, na década de sessenta/setenta a melhor prenda que os beneméritos (Manuel Brasileiro, Américo, Afonso Peras, Toninho da Salvina, Zé Gaitas...) podiam dar ao povo beselguense era trazer a banda a dar uma "volta ao povo".
Em trajes menores saltavam da cama os mais dorminhocos e eram instantâneos e indescritíveis momentos de júbilo incontido.
"-Caramba, isto já não é como dantes!" - vai desabafando o “Benfica” em total desalento.
E a música tem de partir. As luzinhas, no interior da camioneta, afastam-se até para o ano. Acaba a Beselga para os emigrantes. Finda o convívio para os abandonados residentes. Mais um ciclo de vida se fecha na aldeia.
A segunda-feira é já um dia dos novos mordomos. Em tom de ressaca, ainda há um jogo de futebol para limpar os excessos gastronómicos de solteiros e casados. À tarde e noite, um conjunto tenta transmitir (em vão) a animação que, antes, a música, o fogo e a religiosidade arrancaram com naturalidade, mas o ambiente é já algo lúgubre: predominam as despedidas, notam-se já ausências, há prenúncios de dolorosa saudade.

- Mário Lourenço

2 comentários:

Alfredo Ramos Anciães disse...

Olá Mário,

Parabéns por este magnífico trabalho.

1850 é o ano apontado para o início da ermida dedicada ao Senhor dos Passos. A devoção terá contagiado rapidamente os beselguenses, pois que há um quadro exposto na capela (ex-voto) referente a José D`Anciães a agradecer por um milagre que data de 1860. Ou será que a primitiva ermida é anterior a esses períodos. É que há outro quadro (ex-voto) na capela que data de 1804, embora este não tenha a referência expressa ao Senhor dos Passos mas creio que a "J" que significará Jesus.

Anónimo disse...

São textos como este que nos fazem meditar, sorrir, recordar o quanto vale a pena continuar com este objectivo de engrandecer o arquivo beselguense!
É com este tipo de colaborações que construiremos um enorme legado para as gerações vindouras.
Em nome dessas gerações obrigado Dr. Mário e todos os colaboradores deste arquivo ceireiro!