quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A MINHA IDA PARA FRANÇA A SALTO!

Acabara o antigo “quinto ano”. Não havia bolsa de estudo. Impossível sacrificar os parcos recursos que teriam de dar para os nove irmãos. De França acenavam experiências de colegas da aldeia. Procurou-se “o passador”, regateou-se o preço, marcou-se a viagem para dia incerto a confirmar na noite da partida.
Na aldeia viviam-se os preparativos da festa: respiravam-se odores gulosos, estrelejavam foguetes, contemplava-se o levantamento dos gigantescos pinheiros que, no Domingo serviriam para luxuoso palco em que os mordomos arrematavam as prendas da festa. Eu era mordomo. Terminámos altas horas da noite. Caí na cama, exausto, mas feliz. E de súbito...
- Acorda ! Está ali o passador, ides já...
Tombavam, dolentes, três ou quatro badaladas do velho relógio da torre aldeã. De sacola na mão e a mala aviada à pressa, lá ia eu tentar a sorte. Mas que noite tão dolorosa, aquela sexta-feira da festa de 1970...
Éramos dez ...quinze? Já nem sei. Só me recordo que, na escuridão, pelos vidros enevoados, rolávamos entre fumos e chamas de fogos que devastavam as terras de Portugal que eu ia perdendo “com uma lágrima no canto do olho”.
- Além, ao pé daqueles carvalhos, passa uma estrada com areão avermelhado. Antes, há uma casota onde os “carabineiros” costumam estar, mas daqui, do lado de cá dos carrapotos eles não vos devem ver...logo que piseis a estrada, estais em Espanha. Seguis em direcção às casas e esperais no café, junto da estrada.
Era o raiar da manhã . Com o coração apertado, a angústia de quem pode receber um tiro, a cadeia iminente...olhávamos em todas as direcções, como aves assustadas, e nem sentíamos os pés pelos terrenos pedregosos. Um último salto e Fuentes à vista...Tudo correra aparentemente bem! Demorou a carrinha do passador. Agitado, levou as mãos à cabeça e fez-nos sinal para irmos a pé, pela estrada. Que se passava?!
- Entrem ! Rápido, fomos acusados por uns taxistas espanhóis e a polícia vem atrás de nós...E vocês põem-se à espera mesmo à frente do posto da polícia?!...
As imensas planícies castelhanas começavam a fugir velozmente ante os olhos ensonados! O passador continuava insistentemente a procurar a polícia no retrovisor e isso inquietava-nos. As cadeias em que meu pai (com o sr. Franquelim Ramalho, o sr Acácio Anciães e o cunhado, o sr Alberto…) estivera, iam-me sendo realidade à medida que íamos passando pelas placas: Ciudad Rodrigo, Salamanca, Valladolid, Burgos, Vitoria, S. Sebastian, Irun... Aquela noite do 1º sábado de Setembro de 1970 viera rápida. Mas agora... A Polícia faz-nos stop. Meu pai fora preso nesta zona, há três anos atrás. Desgraçadamente a história ia repetir-se?... O passador saiu para a noite. A polícia inspeccionava os documentos da carrinha... algumas pesetas passaram para a mão policial e... afinal, eram só as lâmpadas dos faróis que eram de cor diferente...
Mas em Irun os problemas agravaram-se. O passador propunha-me que eu atravessasse a fronteira na alfândega, descaradamente, fugindo à frente da Polícia... Não aceitei. Sabia os riscos que corria: meu pai fora preso e, além de demorar mais de um mês nas cadeias que o levaram de Irun até Vilar Formoso, viu-se envolvido num drama económico que afectava o numeroso agregado familiar. Meses sem ordenado, emprego perdido, novo pagamento (sempre chorudo) ao passador... Como poderia eu agora correr riscos desses?!... Porém, o passador ameaçava-me que tinha de ir já embora... Resisti, não tinha sido o combinado em Portugal. Depois de uma longa conversa, lá cedeu e foi-me entregar então, por vielas confusas, numa casa perdida num labirinto de ruas (que procurei fixar, desesperado). Disse-me que me entendesse com ela, a nova passadora, e desapareceu... No átrio da casa escura, térrea, discutimos um novo preço...Tive que entregar todo o dinheiro que tinha. Fechou-me num quarto e disse-me para estar acordado, logo que ela chamasse, dentro de algumas horas. Aguentei até às sete da manhã... E ela?... Desaparecera? Que faria eu a milhares de Quilómetros da minha aldeia e sem um tostão?!...Sonhava com o ambiente da festa que eu deixara, sem avisar ninguém... Era mordomo... toda a aldeia esperava com foguetes a banda de música ...

Não evitei, cheio de raiva, algumas lágrimas... Amaldiçoei Portugal... Que razões levavam os governantes a não nos deixar ir, legalmente, ganhar dinheiro para depois poder estudar?!... Como o raio de sol que me entrava no quarto, às onze horas senti um estrondo, agitação, correrias ... a passadora empurrou-me bruscamente para um carro que nos aguardava de porta aberta na rua estreita.
Parámos num jardim, nos arredores da alfândega. Com um postal de Irun, mostrou-me um muro alto que se erguia sobranceiro ao braço de mar e que se dirigia para junto de uma ponte. Antes da ponte, havia uma rede que cortava o muro. Era preciso saltá-la... Mas cuidado... a quinze/vinte metros estava a vigiar o guarda da alfândega. Íamos tentar passar na hora de rendição ao que percebi. Agora, astuciosamente, esperava um grito dela para iniciar a caminhada que conduzia à “terra prometida” - Hendaye, França!...
Esperámos várias horas desesperantes. De súbito, apareceu apressada, colocou-me um grupo de mais dez portugueses e atirou-lhes:
- Segui este, ele já sabe tudo...Eu vou com as bagagens esperar-vos do outro lado. Vá, vá...
Fiquei indeciso, mas nem tive tempo de reclamar. Como um relâmpago, ela desapareceu.
Um canzarrão atirou-se a nós no início do muro, mas foi mais o barulho, que podia despertar a polícia, do que o perigo de morder, estava acorrentado. De cócoras, abaixados entre a relva e o muro, não vi o guarda e saltei a rede separadora. Estávamos com o arco da ponte à vista. Gatinhámos pela relva até ao tabuleiro da ponte . O rosto esboçava um sorriso de alívio e...tantos guardas na ponte! Mas ela dissera que aqui já era França...Passámos a medo pelos primeiros que vinham em direcção a nós... Indiferentes, cruzaram-se connosco... Havia bem calados cá no fundo, gritos de júbilo! Ainda não queríamos crer! Dia da nossa festa do Senhor dos Passos!...
A passadora recolheu-nos do outro lado e deixou-nos na Estação dos Caminhos de Ferro. Nem dei conta que me roubara e me deixara sem os parcos haveres que levava no saco de viagem…Outra odisseia ia começar. A viagem até Chartres de comboio, a legalização, o trabalho. Mas já estávamos no paraíso dos francos e, com sacrifício e trabalho, as dificuldades de agora também teriam de ser vencidas!

- Mário Lourenço

1 comentário:

Alfredo Ramos Anciães disse...

(Nota prévia: Ao moderador peço que seja invalidado o comentário que enviei ontem a altas horas e seja substituído por este, dado ser mais sucinto).

Nesse tempo marcelista as coisas eram difíceis.

Como eu bem entendo os sacrifícios dessa viagem!

Também por cá, houve quem sofresse, pois o meu saudoso pai esteve preso na PIDE em Coimbra. Pela primeira vez que se meteu como angariador, a coisa deu para o torto porque os passageiros demoraram imenso tempo a chegar ao destino e o pai de um candidato, preocupado com o seu filho que seguira a salto para França, havia cerca de um mês, sem dar notícias, acusou o meu pai. Após instruído um processo, foi responder ao tribunal do Sabugal. Apanhou três anos de pena suspensa, porque beneficiou da ficha de registo criminal que estava limpa.

P. S. A minha própria passagem em inícios de Janeiro de 1968 ficará para uma próxima oportunidade.

Um abraço e muitos parabéns pelo post.

Alfredo Ramos Anciães