sexta-feira, 26 de agosto de 2011

NA BESELGA, FONTE DE RECEITA DESBARATADA, Senhor dos Passos fica sem "Poia"...

A História das nossas comunidades locais tem aspectos típicos que são documentos valiosos sobre a melhor maneira de vencer as dificuldades da natureza. Em todas as nossas aldeias, sabe-se como era difícil, até há bem pouco tempo, arranjar dinheiro. Diversão era imprescindível e dava a mão à religiosidade. Na Beselga, desde tempos imemoriais, o forte cunho religioso aperfeiçoou um conjunto de fontes de receitas: os fornos de pão, a poia, as ofertas para arrematar (no fim da missa de Domingo). Cabe às gerações actuais imaginar outras fontes de receita, mas salvaguardar as que os nossos antepassados nos legaram.
Já por várias vezes tive oportunidade de enaltecer a organização de todo o processo económico que está inerente à festa da Beselga. Para uma necessidade vital – o fabrico do pão – os privados (Mecenas de que hoje tanto se fala...) fabricaram os fornos . Os quintaneiros (aqueles que tinham as quintas arrendadas) forneciam à semana as” gestas” e pilros necessários para aquecer o forno. Os forneiros eram os organizadores de todo o processo do fabrico do pão, assim se criando, até, vários empregos na aldeia.
Durante a semana, o forneiro “marcava a vez” aos interessados e ia vigiando a simultaneidade de todo o processo nas várias casas: ia mandar amassar, tender e vir para o forno. Ao mesmo tempo, ia aquecendo o forno, varria-o usando uma série de instrumentos que todos nós, ainda há bem pouco, víamos à entrada do forno, junto à pia : o vassoiro, o rodo, a pá...
Havia algo de solene naquele barracão. Por várias vezes ao dia , ali se operava o milagre da multiplicação dos pães. As pessoas iam conversando sob a autoridade da forneira, num ambiente prenhe de responsabilidade, na penumbra do ambiente , todos os olhares convergiam para a lumieira que ardia à boca do forno, esperando, numa ânsia natural, pelo parto do pão que encheria de fartura as martirizadas casas aldeãs. Não sei porquê, mas o forno sempre se me figurou como a gruta de Belém. Entrava-se da rua por um amontoado de carros de lenha. A porta de madeira esburacada tinha uma graça rude de artista primitivo. Abria-se para um interior escuro em que só se via o brilho do sol ou das estrelas por uma ou outra telha partida. À esquerda havia lenha mais seca para iniciar os rituais do aquecimento do forno. À direita jazia a pia que refrescava o vassoiro aflito do inferno de brasas e a que se encostava o rodo, a pá de meter/tirar o pão e um pau enorme que ajudava no governo dos tições. À direita e em frente havia umas bancas em madeira que sustentavam os tabuleiros rebordados de alvíssimos panais. E como santuário no centro de todas as atenções, ao fundo do lado esquerdo estava o forno. A boca do forno tinha todo o aspecto de um sacrário. Ao lado, qual lamparina do Santíssimo, ia ardendo uma chamazinha que daria direito a uma bola à pessoa que a ia aguentando acesa, durante todo este sagrado processo. Era esta pessoa que costumava deitar a farinha na pá para o pão não se pegar à ferra.
A farinha que em todo este processo abundava (na pá, nos panais, nos tabuleiros ou mesmo no chão escuro de terra empedrada) dava um níveo ar de pureza a todo este templo do deus pão.
No final, começavam as receitas. Todos os que coziam tinham que dar um pão de poia. Este contributo era distribuído em quatro partes iguais: para a dona do forno (a tal Mecenas), para o forneiro, para o quintaneiro e para o Senhor dos Passos. Estes pães do Senhor dos Passos eram trazidos para o adro, ao Domingo, pelo mordomo da festa responsável e era arrematado no final da missa. O dinheiro desta venda ficava para a festa.
Pode parecer que era pouco. Certamente, mas era um pé de meia que permitiu, ao longo dos anos de miséria, fazer com que a festa da Beselga nunca tivesse desaparecido. Por isso, o forno era um templo respeitado por todos: para lá se ia conversar, aí se faziam deliciosas ofertas, aqui vinham os que andavam de “volta ao povo” comer um triguinho quente com açúcar, aqui as criancinhas se deliciavam com as bolinhas...
Em 1999, o forno foi esquecido…destruído, vendido. Possivelmente a abundância de recursos fez esquecer este mealheiro centenário da festa da Beselga.
Com a morte destas instituições, se há sentimentos, dói a amputação e morre dentro de nós uma grande parte do passado. A Beselga ficou mais triste, mais pobre.

-Mário Lourenço

4 comentários:

Alfredo Ramos Anciães disse...

Olá Caro Amigo Mário

Parabéns pelo texto que é uma bela peça de etnografia.

Quanto ao Forno, lembro-me de, numa determinada altura, escrever para a Junta de Freguesia da Beselga, a fim de desenvolver esforços para adquirir / preservar esse Bem. Ainda não tinham sido feitas as partilhas mas eu conversei com a minha família mais directa no sentido de oferecermos a parte que nos coubesse. Não houve resposta da Junta. Se chegarem a acordo com o proprietário do terreno e queiram reconstruí-lo, eu farei o meu donativo para a referida aquisição, que não andará longe do que pensava fazer nos anos 90.

Um abraço.

Alfredo

Mário disse...

Obrigado, Alfredo, pela leitura e resposta. Estás à altura daquela alma grande que foi a tua avó e com quem tive a honra de privar, enquanto a minha mãe foi padeira. Um grande abraço e um obrigado muito grande pelas palavras de incentivo com que sempre me tens dado ânimo para esta gesta de reconstituição das memórias da nossa aldeia...Mário

Ilda Paixão Lucas disse...

Obrigada pelos contributos. Para além de admirar a forma como escreve...aprendo sempre algo de novo com os seus textos,àcerca da nossa Terra. Continue...

Ilda Paixão Lucas

M.Lourenço disse...

Obrigado pelas palavras generosas.