segunda-feira, 21 de novembro de 2011

RETRATOS CEIREIROS / A filha do Nico

Passaram mais de vinte anos. Trinta!.... Já nem me recordo ao certo.
- Já ontem fui a Penedono, mas o sr. Dr. Tito está para uma reunião para Lamego. A rapariguita nem foi trabalhar connosco, ficou a fazer a comida, doía-lhe muito a barriga. De noite chorava que nem uma Madalena...Eram cinco da manhã e botei-me ao caminho até Sernancelhe. Igual, o médico também está para a reunião de Lamego. Valha-me, por alma de quem lá tem! Já fui ao sr Francelino alugar o táxi, mas está para Lisboa... Tenha dó da minha menina!...
Quem poderia não ter dó, ao ver o pai esfarrapado de dor, envergonhado de não poder esconder uma catadupa de lágrimas desobedientes?...
O Inverno tinha sido rigoroso e o caminho da barragem estava uma lástima, mas pior estava o nosso íntimo depois deste choro convulsivo de um pai lavado em lágrimas…Por meio de charcos e fragas, patinando aqui, fugindo para a berma ali, lá fomos.... Ali raspava o motor, depois deslizava o carro para a valeta...Enfim, pelo velho caminho de Penedono lá chegámos junto à barragem.
O Nico lá assobiou com o seu hábito de pastor. Depois um berro desesperado ecoou no paredão da barragem. Ao longe, junto da quinta, dois vultos desciam a escarpa. A tia Germânia Coelho trazia a menina embrulhada no cobertor. Um leve rumor soltava-se a custo da miudita. Tentei ser o mais veloz que pude pelo lamaçal que nos impedia a marcha. À entrada da aldeia, a srª Aninhas do Miguel espiolhou para dentro do cobertor e gritou de pavor: “Está a acabar a pobrezinha, vão depressa!” Redobraram os gritos de dor. Turvava-se-me a vista, não sei se das lágrimas, se das grossas pingas de chuva que caíam sobre o vidro do carro.
Chegámos ao Hospital de Trancoso. Respirei de alívio. Corremos para o médico... mas a tragédia consumava-se: - “Um cadáver? Trazem-me um cadáver?!...” Um misto de revolta, amargura e dor invadiram-nos o rosto. A menina acabara de morrer.
O médico lavava as suas mãos. O pai banhado em lágrimas explicava os passos que dera, os médicos que não encontrara, os transportes difíceis...Maldita apendicite!
Como tinha morrido a filha, era proibido levá-la. O Nico não sabia que fazer.
- Oh sr. doutor, eu sou um desgraçado quintaneiro, não tenho dinheiro para funerárias...deixe-me levar a minha filhinha!...
- Eu não vi a sua filha, faça o que quiser...
E lá partimos para a Beselga. Para o funeral não podia levar a menina para a quinta. Na aldeia, só a casa dos Coelhos tão humilde... “Se ma levasse a Riodades, tenho lá a minha irmã...” A voz rude daquele pai trazia tanta amargura, tanta tristeza que esqueci as legalidades e fomos levá-la a casa da tia em Riodades.
E o homem, depois de procurar a irmã pela aldeia, aberta a casa, lá colocou a sua filha para, enfim, descansar desta vida injusta e cruel...

- Mário Lourenço

1 comentário:

Alfredo Ramos Anciães disse...

Caro Mário.
Acho que, se não fosse este artigo, jamais lembraria a figura típica do senhor Nico que conheci bem na taberna do meu pai e nos caminhos para os lados dos lameirões. Tenho ainda na memória a figura do Nico, quase sempre acompanhado de uma vara. Contudo se conseguissemos uma fototeca das famílias, através da Associação Beselguense, a mesma seria muito útil para o contributo de uma história social da aldeia. Parabéns pela evocação destas memórias.