segunda-feira, 28 de novembro de 2011

RETRATOS CEIREIROS / Zé João

O Zé João morava ao pé do quintal da Donana. Desde pequeno cultivou uma imagem rebelde. Tinha gosto em ser diferente. E até era canhoto, ao contrário da maioria. No adro de baixo, à tarde, antes da hora da carreira, divertia-nos com as suas malandrices e piruetas na bicicleta: parado em equilíbrio, só numa roda, de pé no selim, andar sem mãos...
Quando cresceu um bocadinho, tornou-se virtuoso na arte do drible e instalou-se na equipa de futebol. Franzino, rápido, esgueirava-se pela extrema esquerda, com arte. Muitos golos marcou e deu a marcar. Guardo ainda na memória, entre outras, as exibições, coroadas com golos, no ASA de Nespereira, Figueiredo das Donas, Lafões e, aqui na Beselga, no jogo contra Aregos, debaixo dum gélido granizo... Na Associação foi membro dos Corpos Gerentes e creio que foi mesmo o último a cobrar as quotas aos sócios: entregou-me uma lista com 53 nomes de sócios que lhe haviam acabado de pagar as quotas, antes da saída daquele nº3 da 2ª série de “Mensagem da Aldeia” em Dezembro de 1981...
Acompanhei-o de perto aquando do estágio em Penedono. Fizemos viagens juntos para o emprego em Sernancelhe. Separámo-nos quando foi trabalhar para Trancoso e eu fui para Viseu. Sabia que conservava o feitio rebelde, parecendo irritado quase sem haver razão para tal. Mas no fundo, havia um poço de bondade, de solidariedade, de altruísmo.
Um telefonema brusco deu-me a notícia : um despiste na ponte nova de Ranhados. Um despiste?! Ele que sabia tudo de mecânica, velocidades, cilindrada, estabilidade...Onde estava a sua perícia?...Desistência da vida?...
Encontrei-o na cama do Hospital em Coimbra, respirando ruidosamente...Interpelei-o por várias vezes. Os seus olhos não me fixavam, olhavam em vão... Ao lado, a mãe, banhada em lágrimas, construía uma moldura de “pietá”. E que sofrimento o desta mãe! E o Zé João continuava a desobedecer-lhe... e quis morrer na idade mais bonita da vida.
Com a sua trágica morte , desapareceu aquela imagem ceireira de ar sorridente (mas de ar sarcástico e certeiro) nas voltas ao povo, na Associação, no futebol, nos cafés, no quintal, na pesca, nas conversas...
- Mário Lourenço

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