terça-feira, 26 de abril de 2011

O CEPO DE NATAL

Histórias e Tradições da Minha Aldeia. O Cepo de Natal e Ano Novo
Memórias dos Anos 60. O Cepo do Natal e Ano Novo.

Na semana que antecedeu o Natal de 1964, mais ano, menos ano, havia trocas de opiniões sobre o Cepo. O Cepo é uma tradição e um género de Instituição. Consiste, em primeiro lugar, numa enorme fogueira na praça pública (adro). Dura noite e dia de Natal e chega até ao ano Novo. Ao redor da fogueira o povo reune-se e festeja.
Nos dias de véspera discute-se sobre a preparação e transporte do material lenhoso. Tarefa pesada, já que alguns cepos são raízes de árvores com umas centenas de quilos. Juntas de bois e lavradores eram mobilizados para a tarefa. Hoje o transporte é feito com tratores.
Neste ano, o Cepo foi mais imponente. Muitas almas emigraram para o Brasil, deixando melhores condições económicas para os que ficaram. Outros conterrâneos partiram para além Pirinéus. Regressados para o Natal, traziam dinheiro e uma certa ideia de liberdade.
O despertar da região com a construção de estradas, pontes, barragens e escolas e a saída de jovens para as fileiras militares, também contribuiram para alterar conhecimentos e mentalidades. O professor da aldeia, que também foi meu professor, acumulava a função de vereador na Câmara. Neste ano, o excesso de zelo levou-o a proibir a instituição do Cepo, no adro, a pretexto de ocupação da via pública. Não percebeu que a situação social, económica e até política mudara. Mas nenhum membro da aldeia esteve na disposição de obedecer à autoridade e o Cepo cumpriu-se no local habitual, no adro, junto à igreja, ao pé do presépio.
Aceso o cepo, o ambiente aqueceu, não só pelas labaredas, como pela animação, regada com ofertas dos nossos emigrantes, para demonstrarem a mudança do estatuto e a alegria que lhes ia na alma. Volta meia-volta ouvia-se um folião regressado de além Pirinéus: "Alors, vai mais uma rodada? Didon!".
E vá de distribuir, tinto ou branco, gasosas, laranjadas, sumos ou "bierres", cigarros e cigarrilhas, gauloises ou gitannes.
Nesse dia não havia privação. Bacalhau, couves, fritas ou rabanadas, filhoses, cavacas ou pão-de-ló e bebidas à discrição.
À meia-noite festejava-se o nascimento de Jesus. O lume era atiçado com varas. Botavam-se mais umas achas para a fogueira - raízes, toros, cavacos, giestas, ou pneus velhos que o Afonso da Pilar, o serralheiro mecânico da aldeia, Homem dos sete-ofícios guardava durante o ano.
A fogueira de enormes cepos parecia alumiar até às estrelas. Fagulhas esvoaçantes propagavam-se pelos ares. Por graça, ouviu-se dizer: "São os anjinhos da Maria do Alberto".
Maria do Alberto era uma senhora que fazia rezas e ladainhas para cortar maleitas e espantar maus espíritos. Consta que via frequntemente anjinhos a vaguear pelo céu.
No dia de Natal e nos seguintes, o zeloso professor não queria passar por "derrotado" e organizou uma espécie de inquérito para encontrar apoio à procura dos desobedientes. Ao mesmo tempo tentava cativar testemunhas para depor no Posto da Guarda Nacional Republicana. Os adolecentes e alguns adultos já estavam habituados a ir ao Posto por tudo e por nada. Porém, a tradição cumpriu-se, o povo da aldeia esteve unido e soube contornar os ímpetos da autoridade reverencial e administrativa. Ninguém sabia de nada e todos sabiam de tudo. O desígnio de liberdade permanecia entre nós, antes da primavera marcelista e da Revolução do 25 de Abril. Contribuiram para a mudança: Os emigrantes e os soldados que trocavam conhecimentos e experiências, colhidas nos quatro cantos do mundo e essas experiências vinham no sentido de mais liberdades;O professor Francisco Fonseca que, com o seu excesso de zelo alertou para a tomada de consciência contra o cercear das liberdades e a predisposição para a conquista de direitos; As famílias, porque nenhuma anuiu à revelação dos implicados na alegada desobediência à autoridade; Como motivações de fundo havia também o próprio desenvolvimento da economia que se vinha afirmando nos anos sessenta e ainda a divulgação e difusão da rádio e televisão que apontavam para novos sonhos e para novos mundos de direitos e liberdades.
Não sabíamos nada de política mas sentiamos o direito e a oportunidade de mudar.
Nesta década de sessenta, nem o Natal, nem a luz que o iluminou foram meros rituais.


Texto: Alfredo Ramos
Fotos: Ricardo Duarte (Kaká)

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