quarta-feira, 4 de maio de 2011

O ARTESANATO


A Beselga é uma das nove freguesias do concelho de Penedono no distrito de Viseu. Situada na base da Serra do Sirigo, junto da Estrada Nacional nº 229, dista cerca de 8 km de Sernancelhe, 25 de Trancoso, 65 de Viseu e 6 da sede do concelho.

A Ribeira da Dama, com barragem de regadio desde a década de 60, determinou a actividade principal das gentes desta aldeia.

A capela do Senhor dos Passos, à entrada da povoação, é a primeira imagem que se recolhe e o beselguense habituou-se a guarda-Ia na memória como "ex-libris" sagrado nas suas fatídicas e frequentes jornadas de viandante.


ORIGEM
A religiosidade poderá, aliás, ajudar a esclarecer o étimo BESELGA. Em boa verdade, junto à ribeira, na Devesa, há testemunhos da longevidade beselguense: moinho, ponte e calçada roman(ic)a (?), fonte, capela e cemitério não muito longe das OLGAS.

Também junto à "Ponte da Senhora" teria havido uma capela da Senhora das lameiras, um cemitério e um passal. Esta "Senhora" terá a ver com a ideia sacra de N.º Senhora? Ou ligar-se-á tão só à ideia de "Dama" (nome da ribeira) ou "dona" da medieval Mumadona, senhora de Penedono de há cerca de dez séculos atrás? ...

Pela religiosidade intrínseca à índole popular, parece-me que podemos pensar na evolução de uma basílica que viria da romanização. Nas OLGAS teria começado a Beselga de nossos dias.

Atente-se na possível evolução do vocábulo: BASILICAM > BASILICA> BASILIGA > BASILGA > BASELGA > BESELGA.

Assim, não só a basílica ( = igreja), mas, por alargamento de sentido, a "populatura" medieval que a circundava, teriam tido esta origem.


A JUNÇA

A junça é uma planta que nasce espontaneamente nalgumas serras da região. Era sobretudo na zona de Trancoso que os beselguenses a procuravam.

Ajustadas as condições de arranque com o dono das penedias, partia toda a numerosa família para umas semanas de vida ao ar livre. Normalmente havia uma corte (casebre) no meio do monte onde eram improvisadas camas e onde se guardavam os parcos haveres que deveriam dar para fazer o caldo e as batatas que alimentariam a família, neste despovoado, durante o tempo da colheita da junça.

Arrancava-se a junça enrolando um pau na parte inferior das plantas e puxando. Ao cabo de três ou quatro semanas, conforme o número de participantes, poder-se-ia obter uma centena de molhadas de junça.

Era então altura de regressar para tratar do transporte: com burros, machos ou carros de bois conforme a quantidade e as possibilidades. Mais tarde, as camionetas ainda aprenderam estes caminhos de ceireiros. Os robustos tractores já não vieram a tempo de ajudar nestas lides: quando chegaram à aldeia, na década de 70, já não havia carradas de junça que justificassem o seu uso.

Chegada a junça à aldeia, era exposta aos últimos raios de sol outonal, para secar, no Adro de Cima, no Quintal da Donana, nas "laijas" já desocupadas das malhadas, ou junto aos palheiros do cemitério.

Depois era guardada nos palhais ou lojas para, molhada a molhada, ir saindo, à medida que era necessária no serão.


O SERÃO

Em todas as ruas da aldeia havia um serão. Serão, entendamo-nos, era não só a actividade que se desenrolava à noite, mas também o local, a loja ou palhal, em que se juntavam cerca de cinco ou seis pessoas para trabalhar a junça.

Quase todos os serões obedeciam às mesmas regras. Havia quase sempre um animal (burro, macho ou cavalo) que ia comendo. enquanto as pessoas se dispunham à roda, sentadas no chão. Várias camadas de palhuço ou estrume, cobertos superficialmente por desperdícios de junça, atapetavam o chão. No centro, dependurada numa corda presa à trave, a candeia ia alumiando os presentes.

Enquanto faziam as ceirinhas, trabalhavam na corda, tosquiavam as pontas de junça indesejadas nos artefactos já prontos, ou faziam tapetes na banca, os ceireiros conversavam, riam-se e, às vezes rezavam. Mas também era frequente o namoro.

De vez em quando, os rapazes que tinham andado a ganhar o dia, na sua "volta ao povo", passavam pelo serão. Traziam cartas que haviam obtido no correio (a taberna do "chefe" às sete e meia), vinham dar um recado, traziam o trigo quente com açúcar que haviam acabado de comprar no forno, ou , pura e simplesmente vinham ver as suas namoradas. Às vezes, as brincadeiras eram autênticos espectáculos de revista à portuguesa, embora improvisados e inspirados no quotidiano aldeão.

O serão decorria essencialmente à noite, depois do terço ou da chegada do correio e terminava pontualmente com as doze badaladas do relógio da torre que anunciava o fecho dos serões.

Mas era também frequente ir-se para o serão logo pela manhã e, aí, continuar todo o dia, sempre que a necessidade de mercadoria se fazia sentir.

O VENDEDOR
Lá por longe, do Alentejo ao Minho, andava o chefe de família. Partira com o animal e urna carga para as primeiras despesas. Combinados com a família os primeiros passos do itinerário, lá ia aguardar, nos locais aprazados, os reforços de mercadoria que, da Beselga, a família lhe ia enviando. Faziam-no essencialmente pelo combóio. A mercadoria era entregue na Beselga a uma camioneta de carga que fazia a ligação com Viseu, três vezes por semana. Aí, os capachos e ceiras eram despachados através da CP para as estações em que os maridos aguardavam.

Ainda nos primeiros anos da década de sessenta, havia centenas de fardos de mercadoria que ladeavam os muros do "Chão da Igreja" no adro de baixo à espera da "camioneta dos Carvalhos". Em anos anteriores ia-se de carro de bois até à Régua.

Em alguns casos, bicicletas com suportes reforçados davam uma ajuda aos vendedores. Percorriam enormes distâncias, conheciam Portugal e só não há noticia de palmilharem o Baixo Alentejo e Algarve.

Depois de quatro ou cinco meses de nomadismo, regressavam à aldeia com o apuro de toda esta epopeia. Era altura de preparar a terra para novo ciclo agrícola e fazer férias de ceireiro.

Com eles vinham as histórias protagonizadas ou presenciadas por longínquas paragens. Vinham notícias do mundo que calcorrearam, perante o ar de espanto dos familiares.

A DECADÊNCIA

Mas as ceiras e capachos da Beselga estavam condenados. A emigração destruiu a célula familiar tradicional. O marido começou por ir para o Brasil e mandar ir, depois, a restante família.

Na década de sessenta foi o êxodo em massa para França. Famílias inteiras abandonaram a aldeia. Na década de setenta a Suíça levou todos os que não tinham profissão especifica.

Se somarmos a isto, a diminuição drástica da natalidade e a deslocação para as cidades, verificaremos que a aldeia é hoje um cemitério vivo dos ceireiros que na velhice vivem de recordações...

Mas se o desaparecimento das pessoas é uma das razões essenciais, a evolução tecnológica matou também os produtos da junça: os capachos de plástico são mais limpos e mais baratos, os lagares de azeite têm ceiras de produtos mais resistentes...

Os ceireiros não foram preparados para estas concorrências. Para dar a volta, era necessário dinheiro e apoio estatal que não se vislumbra. Algumas acções da CEE são feitas por folclore, para dar esmolas aos novos servos da gleba que se pretendem domesticados para épocas eleitorais, mas sem nunca se esforçarem por resolver o problema de maneira estrutural e eficiência para o futuro.

Enquanto se assiste à morte de uma geração de ceireiros que eram autênticas celebridades do meio, outras causas ditaram o golpe de misericórdia neste tipo de artesanato.

Na década de oitenta, uma camioneta apareceu na Beselga. Era de um comerciante dos lados do Porto. Perguntou o preço da junça ao kilo. Ninguém queria acreditar que fosse uma pergunta com senso. O comerciante insistiu. Foram-se fazendo contas e lançou-se um preço por alto. O camionista comprou toda a junça que apareceu na aldeia. Na relutância de alguns, outros ajudavam convencendo os renitentes a vender por ganharem mais assim e sem fazerem o trabalho...

Mas como se havia de passar o tempo dos serões sem junça para entreter as mãos?!... O que é certo é que o homem veio de novo no ano seguinte e voltou a levar tudo. Era para fazer vassouras; diziam alguns. Mas o que é ,indiscutível é que este negócio foi a ...vassourada...fatal na já débil actividade ceireira.

A camioneta do comerciante já não vem â aldeia: a última vez que veio já encontrou muito pouca junça que não justificou a viagem assassina. Ainda bem.

Apesar disso, os ceireiros são cada vez menos. Estes últimos anos têm saído muitos epitáfios nos jornais:o Manel da Portela, o Zé Chena, a Veríssima, os Jaquetas, o Sr. Mário, a Pilar, a Miquelina, o Malóio, o Laranjinha, o Olímpio, a Satota...

Mas outros vão morrendo em silêncio. Como a actividade ceireira que lhes deu trabalho, pão e notoriedade durante mais de dois séculos...

Texto:Mário Lourenço

Sem comentários: