sábado, 2 de julho de 2011

RETRATOS CEIREIROS 1- Heróis Trágicos

Nos finais da década de 50, as condições de vida eram extremamente deficientes. Daí que muitas situações de pobreza material e/ou cultural contribuíssem para o aparecimento de pessoas típicas que, pelas suas anomalias, povoaram a nossa infância de crianças. A maioria "desapareceu" na década de 60. Ficaram a residir no Asilo de Viseu.A Carminda, mais conhecida por Xena, vivia no Carril e vinha todos os dias pela manhã desenriçar os seus longos cabelos, sentada junto do cruzeiro do Oitão. Passava parte do dia no forno a ajudar na lumieira (pequena fogueira à boca do forno que alumiava enquanto se metia o pão) e deitando farinha na pá (para o pão se não agarrar), mendigando uma bolinha. Muitas vezes me recordo vê-la a sacudir a farinha da "bola das forças" o que irritava a padeira, ainda sua prima. Morreu por volta de 1980 em Viseu.Os Titas eram personagens conhecidos em toda a região. Um deles, por ser mais perigoso, ficou internado em Viseu e creio que nunca mais voltou à Beselga. Ao contrário o irmão, depois de ser vestido e tratado aproveitava as saídas, a que estava autorizado, para ir tratar dos " inúmeros negócios" que a imaginação prodigiosa lhe granjeava. Dizia as coisas com um tal ar de seriedade, que éramos nós que nos interrogávamos sobre a possibilidade de realização das suas narrativas.- Conhecem aquela quinta no Douro...aquela mesmo ao pé da água e do camboio...? Chego lá e digo ó criado : que estás à espera, num vês que chegou o patrão? Quero uma sopinha e arranja o quarto da última vez. E era um ver se te avias...É verdade, o Tita não pedia. Trazia os bolsos cheios de papeis velhos. Rasgava um pedacinho, num ar de patrão poupado, riscava uns caracteres mais que egípcios, e intimava : tome lá, a casa passa a ser minha, já fiz a escrita em Penedono. Por tão pouco era dono do que queria...Quem nos dera a nós resolvermos os problemas com a simplicidade inconsciente do Tita...Mesmo ao lado de minha casa, moravam o João Fernandes e o Agostinho da Calçada. O primeiro mourejava o dia inteiro tentando destruir uma fraga com uma pedrita: num ritmo alentejano e com paciência africana o tunc!... tunc!... do gracioso calceteiro ecoava enquanto a Maria Jaquetas fazia na corda e a Lurdes e a Leonor entrançavam os tapetes de junça...O Agostinho era mais velho e tutelava o irmão. Um dia de madrugada aterrorizaram-me a infância quando deitaram o fogo à casa, altas horas da madrugada...Que bulício e que horror aquelas chamas!... Nem esgotando a fonte em correrias se conseguia apagar... Pouco tempo depois, uma ambulância dos Bombeiros de Penedono (acabadinhos de formar) conduzida pelo sr. Basílio Marques, veio buscar o João Fernandes.Também o Agostinho depois de rachar crânio ao Manel Jaquetas, desapareceu para Viseu.Mas para a canalhada tinham mais graça os que vinham de fora. O Cocó de Ferreirim chegava e tinha uma tropa fandanga em redor de si. Corríamos atrás dele de volta ao povo e quanto mais ele nos enxotava mais nós exultávamos alaridamente...Igualmente atractiva era a Ana das Coirelas. Com um pau enorme, zangada, abria a bocarra e gritava ensurdecedora um aaaaaaaaaaaaaaaah!... enquanto agitava tremulamente o polegar indicando o céu da boca aaaaaaaaaaaaah!...aaaaaaaaaah!...De certo modo, eram estes os heróis trágicos que animavam a infância, sem televisão jardim ou parque infantil. E por todas as nossas aldeias era igual o ar de folclore que eles emprestavam à monotonia do dia a dia duro desses tempos.

Mário Lourenço

5 comentários:

Americo Afonso disse...

Tive a oportunidade de conhecer tanto o Tiata quanto a Ana das Coirelas. Quando descia a Rua do Vale (tinha 6 anos), me deparava com a Ana na entrada do Adro, dava um 'tiro'de 100 m à velocidade maxima, pois sentia muito medo dela. Quanto ao Tita, acredito que ainda tenha um dos cheques que ele me deu (brincadeira, claro).

Anónimo disse...

João Béco

Interessante o teu artigo Mário, até porque há dias ainda nos recordámos do Tita.

Anónimo disse...

Este texto é mais um contributo importantíssimo para o enriquecimento do nosso arquivo Beselguense.

Devo aqui informar que existe uma fotografia do Tita sentado à porta da Igreja. Bastando para isso clicar no mes de Abril,na barra lateral deste arquivo.

Alfredo Anciães disse...

Olá caríssimo Mário.

O texto vale pela descrição correcta e cativante dos acontecimentos e personagens sociais da época e que deixaram marcas nas nossas memórias.

Mário Lourenço disse...

Só desabafos da memória que,como ondas do mar longínquo, se vão espraiando na areia da actualidade.Basta um bocadinho de atenção, filtrada pelo sentimento genuíno, ceireiro...