sexta-feira, 8 de julho de 2011

RETRATOS CEIREIROS: O Sr. Padre Donaciano

O sr Padre Carlos estava velho e enfermo nos finais da década de 50. Um padre novo ia chegar. Vimo-lo pela primeira vez no seio de uma imensa multidão que fazia transbordar a velha igreja ceireira.
Natural do Touro, paroquiara em Castelo onde era muito querido. Num dia da Srª da Lapa, ouvimos os ex-paroquianos chorarem por causa do seu abandono: com palavras bondosas, acariciava-os com amizade e conforto, justificando-se com a obediência aos superiores...
A Beselga, já de si bairrista, viveu então momentos ímpares. O sr. Padre Donaciano tinha todo o povo com ele, crianças, jovens e os mais e menos idosos. Dizia-se que tinha fama de santo. Magro, de batina, coroa bem visível, os seus dotes oratórios depressa conquistaram a aldeia. Sincero e sentido nos funerais, alegre e efusivo nos baptizados e casamentos, ele emocionava-se e ria conforme o estado dos seus paroquianos. Todos se esforçavam por lhe agradar. Começou por viver na casa do adro, mas depressa o povo meteu mãos à obra e construiu a casa onde hoje vivem o Sr.s P.es Carlos e Chico na Portela. Recordo-me que na sexta-feira de Páscoa, jogava-se a bola no adro de baixo, quando uma série de mulheres vieram praguejar por se andar aos pontapés a Nosso Senhor, porque nesse dia, dar pontapés na bola era pontapear Nosso Senhor. Discordaram os rapazes e uma delegação foi à casa da Don´Ana, onde ele morava... Veio delirante a juventude: “ o sr. Padre disse que, apesar da morte de Jesus, podia-se jogar a bola”. As mulheres retiraram-se obedientes.
A catequese modificou-se: em vez de ser na Sacristia ao sabor da longa cana da Índia que afugentava a criançada, passou para a Igreja onde várias catequistas ensinavam com catecismos bonitos. Havia magustos e convívios, nos Moínhos ou na Capela.
À noite havia filmes (passagem de diapositivos comentados) na sacristia. E a solenidade da sua voz enchia-nos de emoção, à medida que projectava cenas das Bodas de Caná, da fugida para o Egipto, da Anunciação, da festa de Pentecostes...
E, desde o início, que o brio era avivado: compraram-se paramentos, bandeiras e todos os acessórios eclesiásticos... sempre do melhor. E o povo sempre de peito aberto, disponível para colaborar com ele. Fizeram-se obras mesmo sem ser da Igreja: até a ponte foi reconstruída com dinheiro pedido casa a casa...
Mais tarde acarinhou e convenceu os pais a que deixassem ir estudar os filhos para Penedono e Sernancelhe. Essa geração tem de lhe estar grata.
E as festas que se faziam no Natal e na Páscoa! Sempre com dignidade, com teatros, cânticos. Os emigrantes a tudo correspondiam com os francos, marcos ou cruzeiros copiosos...
Era engenhoso, o sr padre. Tinha luz eléctrica a partir de um motor que ele engendrara. Os rádios não tinham segredos para ele, montava e desmontava tudo com paciência de cientista. Quando veio a luz eléctrica montou um sistema de rádio a partir da Igreja : os que não podiam assistir às cerimónias religiosas, só tinham que sintonizar o rádio e ouvir na telefonia...
Quase três décadas foi o pai incontestado. Na década de oitenta as doenças agravaram-se. A família tinha-o também amargurado. Recordo-me do último sermão de dia da festa na Capela. Nunca pregara nesse dia, mas nesse ano o orador (Sr Pe Cândido) atrasou-se demasiado e ele teve que ir deixando abrir-se o coração. E falou e comoveu todos de improviso...Era a sua última festa. Ainda nos deu os parabéns, quando lhe fomos prestar contas, por termos feito renascer o arraial na Capela. Fomos os seus últimos mordomos.
Em Fevereiro do ano seguinte, sucumbia depois de um longo calvário. E, no cemitério do Touro, lavados em lágrimas de profundo e sincero pesar, sentimos que era um confidente que perdíamos para sempre.
- Mário Lourenço

1 comentário:

Anónimo disse...

João Béco
Lembro-me bem desse Padre, já não me lembrava como se chamava. Pois o Padre Donaciano de seu nome deu a extrema unção à minha avó Umbelina, creio que em Agosto de 1960, mas ela só morreu em Dezembro. Lembro-me bem do alvoroço que foi nas mulheres solteiras da Beselga a chegada do Padre. Mais me recordo do desespero do nosso avô com a falta da nossa tia Judite pra ceia, com as idas à Igreja.