domingo, 24 de julho de 2011

RETRATOS CEIREIROS: O nosso Barbeiro e Dentista

Em 2002 foi-nos roubado, no mês de Janeiro, o sr Amílcar. Doente há algum tempo, a morte da srª Silvina – companheira de seis décadas - deixou-o combalido e sem forças para continuar a viver.
O sr Amílcar mais que um beselguense, era uma instituição. Como ao pároco se pagava a côngrua, os ceireiros pagavam-lhe um alqueire de pão para, durante o ano, terem direito a corte de barba e cabelo. Com o sr Antero Teixeira ou o sr Acácio foi o que mais praticou este ofício de ressonância medieval. Ao fim de semana, a sua casa ao fundo da Rua das ‘Moreiras, era o centro da romaria dos que se queriam assear para se apresentarem decentes na missa de domingo. Até o sr Padre Donaciano chegou a vir fazer a coroa! Aos sábados, passávamos muitas horas em conjunto, em sua casa. As escadas graníticas serviam, com bom tempo, de bancos de espera. No cimo do primeiro lanço de escadas, virava-se à esquerda: da soleira da porta espreitava-se para o interior. A parede granítica, caiada, tinha grandes arcas a toda a volta da sala. Várias ceirinhas se espalhavam, convidando a sentar. Do lado direito havia um taipal com uma porta ao centro. Ao canto, junto da janela, o sr Amílcar ia aviando os fregueses. Era o palco de toda aquela plebe que ia discutindo as desavenças aldeãs, as notícias mais ou menos recentes, verídicas ou inventadas. Daí que nunca me custasse a perceber a referência de Eça «às lojas loquazes dos barbeiros». Cabelos hirsutos, nada cuidados, iam sendo deitados abaixo pela máquina que nos rapava o pescoço até bem alto.
De vez em quando, a Srª Silvina aparecia com as toalhas de linho bem passadinhas (pareciam as que a srª Leonilde levava para o altar) ou intimava-o a que fosse almoçar, que o caldo já estava frio.
Junto aos vidrinhos da janela, vinham ramos de árvores curiosas observar o trabalho do hábil artesão. E às vezes pareciam assustar-se com os gritos da canalha que vinha arrancar dentes.
É verdade, o sr Amílcar também era dentista. Os médicos não tinham tempo para essas coisas sem importância. No intervalo de uma barba ou cabelo de homem, lá chamava um petiz. Sentava-o numa tábua apropriada que colocava nos braços da cadeira, chamava dois homens: um segurava o rapazito pelos braços; o outro agarrava-lhe bem a cara. Era então a vez de examinar minuciosamente o dente a extraír. Procurava o alicate adequado e...aí vai. Começavam os gritos ensurdecedores. Com firmeza, tentava trazer todo o dente de uma vez. Às vezes escarchava de tão podre e era necessário recomeçar. Mas, no final, ali estava em contemplação o odiado provocador de tanta dor. No lavatório, ao lado da cadeira, havia líquido apropriado para bochechar. E lá íamos chorosos, que a dor, sem qualquer anestesia, durava a passar!
Nesse dia, em ambiente doloroso, a barbearia foi, pela última vez, local de reunião de todos os ceireiros: prestava-se a humilde mas genuína e merecida homenagem a este hábil artífice que, durante mais de meio século, cuidou dos beselguenses.

- Mário Lourenço

2 comentários:

Anónimo disse...

Os artigos (retratos) publicados dão um colorido extraordinário à vida beselguense. Bem haja ao autor e ao editor. No entanto, espero que as coisas não fiquem pela metade, que ao reavivar determinadas personalidades, Padre Donaciano, Prof. Francisco ou mesmo o humilde Sr. Amilcar, se encontre maneira de os deixar para a posteridade na memoria colectiva. Por outro lado, para mim e, porventura, para outros não deixa de ser um reviver da infância/adolescência.

João Beco

Alfredo Ramos Anciães disse...

Verdade, verdadinha, a par das tabernas, as barbearias eram um centro social, de convívio e informação.
Lembro-me da paciência do tio Amilcar para estar ali horas a fio e com pouco ganho. A vida era assim, dura para todos.